"… o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite… É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos."
Inspirada na obra literária de José Saramago (1922-2010) e comemorando o centenário de nascimento do escritor galardoado com o Nobel de Literatura de 1998, propomos-lhe uma incursão pela Rota do Românico através do olhar do autor, que percorreu o país, de lés a lés, entre outubro de 1979 e julho de 1980, na sua Viagem a Portugal.
"… o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite… É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos."
Inspirada na obra literária de José Saramago (1922-2010) e comemorando o centenário de nascimento do escritor galardoado com o Nobel de Literatura de 1998, propomos-lhe uma incursão pela Rota do Românico através do olhar do autor, que percorreu o país, de lés a lés, entre outubro de 1979 e julho de 1980, na sua Viagem a Portugal.
Almoço
Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro
Felgueiras
“Felgueiras já ficou para trás, e aí em diante é Pombeiro de Ribavizela, um mosteiro arruinado, triste como só os mosteiros em ruínas conseguem ser. São cinco horas da tarde, o dia vai escurecendo, e o viajante cai em grande melancolia. A igreja, por dentro, é húmida e fria, há manchas nas paredes onde a água das chuvas se infiltrou, e as lajes do chão estão, aí e além, cobertas de limo verde, mesmo as da capela-mor. Ouvir aqui missa deve valer uma indulgência geral com efeitos pretéritos e futuros. Mas o assombro do viajante atinge extremos quando a mulher da chave lhe diz que na missa das sete da manhã é que a afluência é grande, vem gente de todos os lugares próximos. Sob a capa fria e húmida da atmosfera, o viajante arrepia-se: que será isto pelos grandes frios e dilúvios do Inverno? Quando vai a sair, a mulher aponta-lhe as arquetas tumulares que ali estão, de um lado para o outro da porta. «Um é o Velho, o outro é o Novo», diz. O viajante vai certificar-se. Os túmulos são do séc. XIII. Um deles representa D. Gomes de Pombeiro na tampa e deve conter-lhe os ossos. Esse é o Velho. Porém, o Novo, quem será? Não o sabe dizer a mulher da chave. Então, o viajante aceita sem discutir o que a sua própria imaginação lhe propõe: o outro túmulo é também de D. Gomes de Pombeiro, feito quando, mancebo e vivíssimo rapaz, recebeu grave ferimento em batalha, de que felizmente escapou. Fez-se o túmulo para escarmento e D. Gomes de Pombeiro esperou pela velhice para ir descansar ao lado da sua própria imagem quando moço. É um imaginado tão bom como qualquer outro, mas o viajante não fez dele confidência à mulher da chave, pois ela merece outro respeito que este brincar com os mortos, tanto mais que não terá túmulo de pedra nem estátua jazente, e se a tivesse haveria de merecer a sua dupla imagem, a Nova que foi, e a Velha que é de amargoso luto e face sucumbida. Fecha a mulher a igreja com a grande chave e retira-se para as ruínas do convento, onde mora. O viajante olha a altíssima fachada, a grande rosácea, compraz-se alguns minutos no híbrido mas formoso portal. A tarde morre mesmo, já não há quem segure este dia”.
Mosteiro de São Pedro de Ferreira
Paços de Ferreira
“O viajante, hoje, andou devagar. As estradas estão desertas e vão-se cobrindo de sombras. O Sol tanto aparece como desaparece, ora o escondem os montes, ora se esconde nas nuvens. Depois a paisagem vai descaindo, é de vaga larga, há espaço para abrir grandes áreas de cultivo, fundos e planos vales. Em Paços de Ferreira o viajante desatinou o caminho. Não lhe faltaram explicações, vire além, primeira à direita, terceira à esquerda, apanha a estrada alcatroada, e depois segue em frente até à escola. Eram matemáticas demasiadas. O viajante ia, voltava para trás, repetia a pergunta a quem já tinha perguntado, sorria amarelo quando lhe perguntavam: “Então não deu com o caminho? Olhe que é fácil, vire além, primeira à direita, etc. “Lá pelas tantas, em desânimo, o viajante encontrou a sua fada benfazeja: uma alta mulher, morena, de olhos azuis, fundos, figura de cariátide, enfim, uma espécie de deusa rústica das estradas. E como as deusas não podem enganar-se, encontrou o viajante a igreja do Mosteiro de São Pedro de Ferreira, onde afinal não pôde entrar. Perdera muito tempo a desenredar a confusão entre Ferreira e Paços de Ferreira, e agora tinha de contentar-se com as belezas exteriores: o nártex românico, com o campanário ao lado, o aspecto geral de fortificação que a igreja mostra, e, sobretudo, o belo portal, os motivos estilizados dos capitéis, que no entanto se apagam sob a simplicidade geometrizante das arquivoltas, todas em lóbulos perfurados, como um enorme bordado. O viajante ainda foi bater a um portão. Havia luz em duas janelas, mas ninguém quis aparecer. Veio ladrar um cão ás grades, duma maneira que o viajante achou ofensiva, e, por isso, afastou-se, melindrado".
Mosteiro de São Pedro de Cête
Paredes
"Depois de Paredes, ainda houve uma ressurgência de paz quando o viajante andou por Cete e Paço de Sousa. Para chegar ao Mosteiro de Cete teve de seguir por um caminho de cova e lomba, e tendo chegado vieram três mulheres ao terreiro, cada qual com a sua ideia sobre o lugar onde estaria a chave, e enquanto clamavam para vizinhas mais distantes, que cuidavam ouvir trave em vez de chave, o viajante resignou-se. O dia tinha dado muito e recusado muito. É assim a vida. Agradeceu às mulheres a boa vontade e os clamores e foi ele à vida, levando apenas na lembrança o insólito gigante que ampara na fachada o que lá dentro esteja, e que não pôde ver".
Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa
Penafiel
"Em Paço de Sousa foi compensado com grandes abundâncias. A igreja do Mosteiro do Salvador de Paço de Sousa está num rebaixo plano e arborizado, passa mesmo ali a lado um ribeiro que irá desaguar no rio Sousa. A tarde está no fim, e ainda bem. Esta é a atmosfera que convém, cinza sobre verde, rumor de águas rápidas. A chave vem dá-la o próprio padre. O viajante, se tivesse de confessar-se, acusar-se-ia de negra e vesga inveja. É que todo este sítio, sem particulares grandezas, é dos mais belos lugares que o viajante tem visto. Aqui gostaria ele de viver, nesta mesma casa onde lhe deram a chave com muitos bons modos, sem desconfiarem das más intenções que na alma lhe fervem. Paciência. Abre o viajante por sua mão a igreja, mas antes reencontrou o Sol e a Lua românicos, e o boi interrogativo em grande conversa com uma figura humana que, com a mão no queixo, se vê mesmo que não sabe responder. Por cima e aos lados, arquivoltas e colunelos são góticos, e a grande rosácea, bela e atrevida no seu lançamento. Dentro está-se muito bem. Há a nudez que o viajante estima, se se fecharem os olhos a modificações feitas em séculos posteriores. É aqui que está o túmulo de Egas Moniz, obra é certo que rústica, mas de um vigor, de uma força muscular, assim apetece ao viajante exprimir-se, que vencem as requintadas e minuciosas esculturas do gótico avançado e do manuelino. Outro viajante terá outra opinião. A este toca-o muito mais a rudeza de um cinzel que tem de começar por lutar consigo próprio antes de conseguir vencer a resistência da pedra. E é bom que nesta luta se veja que a pedra não foi inteiramente dominada. Muito mais tosco é o S. Pedro, embora de três seculos mais tarde: obra de canteiro inspirado que quis fazer um santo e acabou por fazer um calhau magnífico. O viajante foi entregar a chave e agradecer. Deu uma última vista de olhos, com muita pena de partir, mas achando que, ao menos neste lugar, estão certas coisas com a sua primeira tradição: para fundador do mosteiro não poderia encontrar-se ninguém com melhor nome que aquele abade D. Troicosendo Galendiz, aqui vindo num ano do século X a escolher o sítio onde se abririam os caboucos. O viajante já vai na estrada e ainda diz, como quem trinca um miolo de noz:
«D. Troicosendo Galendiz. D. Troicosendo Galendiz.»".
Jantar e alojamento
Igreja de Santo André de Telões
Amarante
“Há aqui um mosteiro com uma airosa galilé, ainda que restaurada. Quando o viajante sai das estradas principais cobra sempre grandes compensações. O vale onde foi construído Telões é aberto, amplo, passa aqui um ribeirito qualquer, e quando o viajante vai entrar na igreja são horas de bater o relógio. Lá dentro, na igreja, há um painel das almas que atrai o viajante. Tem São Miguel da santificada lança umas labaredas de cor natural, mas os olhos vão cobiçosos para aquela formosíssima condenada, de peitos firmes e apetitosos, que arde voluptuosamente entre as chamas. Não está bem que a igreja castigue as tentações da carne e ao mesmo tempo as provoque desta maneira em Telões. O viajante saiu do templo em pecado mortal".
Ecopista do Tâmega - Amarante
Amarante
“Porém já fora de Amarante, trata-se de descobrir S. João de Gatão, onde é, e onde não é, não faltam as indicações, estes homens que fazem a vindima empoleirados em altas escadas: “Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à direita, é logo lá”. (…) Esta casa é de poeta. Viveu aqui Teixeira de Pascoaes, debaixo daquelas telhas morreu”.
Almoço
"Agora vai o viajante entrando em Amarante, cidade que parece italiana ou espanhola, a as pontes e as casas que na margem esquerda do Tâmega se debruçam, o balcão dos reis virado à praça, e este hotel modestíssimo cujas varandas traseiras dão para o rio, donde a esta hora do entardecer se levanta uma neblina, talvez só a poalha da água precipitada nos rápidos, rumor que povoará os sonhos do viajante, para sua felicidade. Porém, antes, jantará no Zé da Calçada, com proveito e gosto. E ao atravessar a ponte não fará outro sermão, mas pensará; “Esta há-de ter histórias. Mais teria a que neste lugar existiu, construída no século XIII pelo S. Gonçalo de cá e povos de Ribatâmega. Bons tempos esses em que o santo levava a argamassa ao alvenel e ficava muito agradecido".
Museu Amadeo de Souza-Cardoso
Amarante
"O viajante arrepia-se só de pensar no calor que já estaria se fosse Verão. A primeira ida é ao Museu Albano Sardoeira, onde há algumas peças arqueológicas de interesse, umas tábuas quinhentistas que merecem atenção, mas, acima disso e do resto estão os Amadeus, soberbas telas do período de 1909 a 1918 com um saber de oficina que as mostra no esplendor da última pincelada, como se o pintor, acabada a obra, tivesse saído agora mesmo para a sua casa de Manhufe onde a vindima o estava esperando”.
Jantar livre e alojamento
"Quando o viajante acordou, ainda mal aclarava, percebeu que não fora só o marulhar da corrente do rio que o embalara. Chovia, as goteiras despejavam cataratas sobre os ladrilhos da varanda. Acostumado a viajar com todo o tempo, encolheu o viajante os ombros debaixo dos cobertores e tornou a adormecer..."
Igreja de Santa Maria
Marco de Canaveses
“(…) e segue por baixo das grandes frondes da alameda, a tomar a estrada que o levará a Marco de Canaveses. Suave caminho é este ao longo do Tâmega, formoso e brando para éclogas. Em sua reflexões, o viajante vem a concluir ser o lugar bom para pastores arcádicos, pelo menos enquanto não desse a morrinha nas ovelhas e as frieiras nos dedos do zagal".
Igreja do Salvador de Tabuado
Marco de Canaveses
“O viajante deixa ao lado Marco de Canaveses e vai à procura de Tabuado. O que resta dos frescos da capela-mor, obra quatrocentista, retém os olhos, e o viajante fica a pensar nos desvios de gosto que terão feito ocultar, em passados tempos, a beleza rústica destas pinturas, quem sabe se por isso mesmo poupadas a maiores estragos".
Almoço
Jantar e alojamento
Caminho de Jacinto até à Fundação Eça de Queiroz
Baião
"Os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares cheirosos em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza. Deixando resvalar o olhar observe os vales poderosamente cavados (...) os bandos de arvoredos, tão copados e redondos de um verde tão moço e sinta, por todo o lado, o esvoaçar leve dos pássaros".
Eça de Queiroz, em «A Cidade e as Serras».
Almoço Queirosiano
“Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde — um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de optimismo na face, citou Virgílio:
- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?"
Eça de Queiroz, em «A Cidade e as Serras».
Passeio em todo o terreno pela Serra da Aboboreira
“(…) o viajante não se sente atraído por lugares habitados. Não se detém em Baião, continuando para norte, a par do rio Ovil, e num lugar chamado Queimada, vê sinal de que há ali perto dólmenes".
Merenda regional e alojamento
Almoço
Ponte da Panchorra
Resende
"Às vezes vêm ao viajante tentações, benignas elas são, de fazer a viagem a pé, com a mochila às costas, o bordão, o cantil. São lembranças do passado, não se deve dar importância. Mas, se o fizesse, teria outros nomes para escrever, e diria que de Ermida subiu ao Picão, depois a Moura Morta, ou a Gralheira e Panchorra, ou a Bustelo, Alhões e Tendais, terras aonde afinal não irá. Enfim, mesmo por esta banda não sai mal servido de nomes: Mezio, Bigorne, Magueija, Penude, e no remate primeiro desta estrada estará São Martinho de Mouros. O viajante procura a igreja matriz da terra. Fica a um lado, virada para o vale, e, assim implantada, dando a face aos ventos, percebe-se que mais a tenham feito fortaleza do que templo. Com uma porta sólida, trancas robustas, mouros que viessem teriam sido vencidos como os venceu aqui Fernando Magno, rei de leão, no ano de 1057, ainda faltavam quase cem anos para Portugal nascer".
Igreja de São Martinho de Mouros
Resende
"Não estava ali para brincadeiras o torreão. Nunca viu nada assim. Afinal, a proclamada rigidez das propostas românicas ainda deixava bastante tempo à invenção. Colocar lá em cima aquela torre, resolver os problemas de estrutura que a opção implicava, conciliar as soluções particulares com o plano geral, unificar esteticamente o conjunto (para que hoje se possa achar tudo isto magnífico), significa que este mestre-de-obra tinha muito mais trunfos na manga do que o comum dos traçadores de risco da época. E quando o viajante estiver lá dentro verá, com espantados olhos, como foi encontrada a maneira de sustentar a torre: assenta ela em pilares que se erguem logo depois da entrada, formando uma espécie de galilé voltada para dentro, de efeito plástico único. (…) Quando o viajante sair, dirá a uma mulher, que por acaso vai passando aqueles desertos, estas e outras indignações, envolvendo-as em conselhos de cautela, porque, ali, desamparadas, estão as imagens muito a jeito de mãos cobiçosas".
Fim da viagem
“É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.”
Consulte a sua agência de viagens.